Saltos Quânticos nas Ciências da Complexidade: do Cerne Físico ao Ambiente e Sociedade

Rui Pita Perdigão
Divulgação: SIC Notícias, 2021.12.13
DOI: 10.46337/qites.m211115

 

O que acontece quando juntamos as ciências da complexidade, os sistemas de informação, as tecnologias quânticas, e as ciências naturais e sociais? Se cada qual se mantiver afecto ao seu nicho conceptual e operacional, obteremos simplesmente um conjunto de “notáveis” em manta de retalhos. A nossa conversa de hoje apresenta uma Física interdisciplinar de fronteira que permite articular estes e outros “notáveis” num formalismo cuja valia sinérgica transcende a soma das valências individuais. Seja a nível teórico e fundamental no avanço do conhecimento, ou prático e operacional fazendo face a desafios multissectoriais da ciência, tecnologia, sociedade e ambiente.

O nosso mundo é um sistema dinâmico que abarca uma grande diversidade de processos e interações num todo coevolutivo complexo. Discernir e inferir a sua dinâmica requer a recolha, processamento e análise de elevados volumes de informação, bem como a concepção e operação de modelos matemáticos aptos a caracterizar de forma rigorosa e eficaz a forma como a miríade de processos e a complexidade das suas interações se articulam num todo coeso e consistente.

A situação torna-se ainda mais fascinantemente complexa na interface entre as ciências naturais, sociais e tecnológicas de fronteira. Diferentes áreas do conhecimento, munidas das respetivas linguagens e protocolos, cuja articulação e conciliação requer uma estrutura conceptual e operacional que as tome em devida conta e detalhe sem todavia perder a coesão dinâmica e mais-valia do todo sistémico.

Tal requer ir muito além da tradição em que as várias áreas têm sido ou integradas de forma demasiado simplificada com perda de informação relativa a detalhes cruciais, ou articuladas em “mantas de retalhos” onde a estruturação e fluxo da informação têm sido inconsistentes com a dinâmica sistémica que pretendiam abordar e representar.

Abrindo Caminhos Emergentes na Física de Fronteira

Por forma a ultrapassar esses desafios, e ciente de que a tradição não pode continuar a ser o que era, tenho vindo a desenvolver caminhos emergentes na ciência interdisciplinar da Física da Informação e dos Sistemas Coevolutivos Complexos, especialmente no seio da minha cátedra e instituto.
Esta Física de fronteira traz um formalismo matemático muito mais apto a articular os números e palavras, as equações e emoções, as forças e ações, as formas e funções, as incertezas e opções de forma coesa, integrada e consistente. Onde a complexidade não se fica pelo edifício de índole informática ou ecológica das teorias tradicionais de sistemas, mas algo bem mais robusto, representativo e geral. Onde a dinâmica dos sistemas emergentes de uma coevolução sócio-natural é dotada de formulação físico-matemática robusta de reforçada aptidão descritiva, preditiva e explanatória. Que tem a capacidade de naturalmente emergir de forma fisicamente consistente, tecnicamente eficaz, ecologicamente sustentável e socialmente justa. Que traz rigor matemático à discussão filosófica, e reflexão filosófica ao formalismo matemático.

Do ponto de vista formal, nasceu uma formulação mais matematicamente robusta e solidamente operacional para a Física da Informação e da Complexidade. Em que ao invés da Física se subjugar cegamente às ciências e tecnologias da informação, dá-lhes novo alento e robustez facultando à informação uma inequívoca base física natural. E com mais-valias práticas e operacionais revolucionando tecnologias de informação e sistemas de análise, previsão e suporte e decisão multissectoriais.

Esta Física robusta mas versátil faculta um edifício conceptual, formal e operacional de análise, modelação e ação por forma a articular explicitamente a informação nas suas mais diversas facetas e interações, entre a microescala de processos individuais, as suas interações multi-escala e a macroescala do sistema como um todo, com uma língua franca, una e transversal.

Ao o fazer, articula os saberes – e sabores – das várias áreas e contextos envolvidos, com a inteligência natural emergente de tudo o que existe e se manifesta no nosso cosmos. Incluindo as dinâmicas caóticas e incertezas associadas, que também fazem parte da vida do sistema e da forma como o percepcionamos e com ele comunicamos.

Desafiando os Limites da Computação

A investigação e operação exaustivas de processos e interações em sistemas complexos, seja através de modelos tradicionais, de tecnologias de informação, e mesmo a articulação entre formas de inteligência natural e artificial, invocam recursos computacionais de grande envergadura para testar e implementar todo o tipo de abordagens e aplicações.

O primeiro impulso seria assim tomar partido de infraestruturas internacionais estabelecidas para computação de alto desempenho. No entanto, essas infraestruturas ainda acarretam o paradigma computacional convencional, ao qual escapam processos e interações de complexidade não-trivial. É por isso que geralmente os modelos tradicionais, como sejam os usados nos serviços operacionais ligados ao clima, são incapazes de resolver partes fundamentais da dinâmica, resignando-se em aproximações e parametrizações para desenrascar o que não conseguem abordar com rigor, como sejam questões cruciais de caos e turbulência.

Por mais gigantescos que sejam os recursos de implementação e operação nos sistemas de computação clássica, não conseguem processar nem resolver adequadamente os modelos da dinâmica de sistemas fenomenalmente complexos como o nosso planeta. Os resultados que dali saem ficam assim aquém de um nível que permita almejar a representatividade desejável para discernir e simular com elevada qualidade e precisão o que se passa e o que possa vir a acontecer, e muito menos para ajudar a enfrentar os desafios de um mundo em mudança.

Salto Quântico na Computação e Previsão

Por forma a ultrapassar tais desafios e limitações, lancei as plataformas QITES – Quantum Information Technologies in the Earth Sciences (também ligada à nossa constelação de que vos falei no mês passado aqui), e ESDI – Earth System Dynamic Intelligence. Aliando assim as valências das tecnologias quânticas com as da física da informação e complexidade coevolutiva, bem como as da inteligência sistémica da dinâmica do sistema Terra.

Para tal, comecei por reformular os sistemas de análise e previsão. Do ponto de vista da análise de informação, redesenhando os sistemas de inteligência para tomar o máximo partido das valências quânticas, efetivamente otimizando procedimentos e qualidade da análise sem as concessões que acarretavam as plataformas tradicionais.
Do ponto de vista da previsão, reconstruindo a raíz fundamental do formalismo matemático que rege os modelos geofísicos em vez de simplesmente desperdiçar o poder da computação quântica com as limitadas formulações geofísicas clássicas.

O valor acrescentado da computação quântica advém de tomar partido da física fundamental subjacente, mesmo já na formulação teórica e algorítmica per se, e mesmo tendo em conta a longa caminhada no desenvolvimento e maturação de infraestruturas e equipamentos. As propriedades da física quântica são uma mais-valia diferenciadora que permite codificar, processar e transmitir a informação através de configurações ou estados quânticos dos constituintes materiais, das suas sobreposições e interações. E fazê-lo com elevada fidelidade, robustez e segurança.

Os estados quânticos e sua sobreposição facultam mais graus de liberdade do que a dicotomia binária utilizada na computação tradicional. Como tal, uma unidade quântica de informação encerra em si mais do que 1 e 0, sim ou não, “on” ou “off”. Admite a coexistência ou sobreposição de estados, e um alfabeto mais rico com que construir e escalar exponencialmente a capacidade de tratamento da informação.

A interação por entrosamento entre estados quânticos permite construir estruturas de entrelaçamento e articulação da informação cuja natureza e eficácia são inalcançáveis pelas tecnologias tradicionais. Entre outras valências, potencia-se a rapidez, robustez, fiabilidade e segurança da articulação da informação em redes de computação e comunicação.

Todavia, os ganhos não se ficam por aqui. Temos desenvolvido formalismos de entrosamento ainda mais abrangente, que envolvem a articulação colectiva e não linear entre múltiplos estados. Trazendo assim à esfera tecnológica quântica algumas das valências até então apenas concebíveis nas métricas de informação ainda mais gerais que desenvolvi em áreas da Física não linear (Perdigão 2017, 2018).

Além-Quantum, rumo ao Firmamento da Complexidade

Estes avanços na sinergia entre a Física quântica e a Física não linear têm permitido transcender as limitações dos paradigmas de rede, incluindo os das tecnologias quânticas pré-existentes, e assim conseguir caracterizar e processar interações multilaterais não-triviais de grande complexidade, como sejam as patentes nos sistemas de inteligência, análise e modelação que temos estado a desenvolver na interface coevolutiva entre ciências naturais, sociais e tecnológicas de fronteira.

Os fundamentos físicos subjacentes à essência da informação nesta forma emergente de Física da Informação facultam-nos não só evidentes ganhos ao nível da computação e operação, mas também ao nível da compreensão fenomenológica concreta dos sistemas com que trabalhamos. Sendo que em vez de ter a natureza feita de informação, temos a informação feita de natureza. Em vez de termos o concreto feito de pura abstração, temos a abstração assente na essência do concreto. Algo que podemos medir, experimentar, calcular, interpretar, manipular e utilizar nas mais diversas aplicações, seja na análise de dados massivos como na modelação da dinâmica de sistemas complexos com reforçada robustez e consistência natural.

Em termos tecnológicos, esta nova física da informação de base natural permite recolher, processar, guardar e trocar informação através de processos naturais, porquanto a natureza oferece as plataformas mais sublimes de computação e comunicação, assentes na física mais fundamental que governa o cosmos… e o caos.

Em termos científicos, traz ainda novo impulso desde à subtileza da gravitação quântica ao ribombar galopante da termodinâmica cosmológica, através dos meandros da complexidade dinâmica fluida que introduzi em Fluid Dynamical Systems: from Quantum Gravitation to Thermodynamic Cosmology (Perdigão 2017).

Da Física de Fronteira ao Ambiente e Sociedade

Ao abraçar o desafio de aperfeiçoar a própria Física de fronteira, tornou-se possível abrir caminho para a descoberta de novos princípios e à abertura de novos caminhos de análise, predictabilidade e ação relativas a sistemas dinâmicos complexos.

Na prática, tornou-se possível abordar de forma rigorosa e concreta algo que escapa aos modelos tradicionais: eventos extremos altamente irregulares e impactantes que até então eram considerados como imprevisíveis, como sejam os eventos considerados como “black swan”. Tal como eventos críticos ao nível da estrutura funcional dos sistemas, como na dinâmica coevolutiva do sistema climático e sócio-ambiental e nos sistemas de análise de risco, previsão de catástrofes, alerta precoce e suporte à decisão para uma robusta e célere prevenção e abordagem de fenómenos disruptivos.

A plataforma de análise e previsão daqui emergente é não só mais rápida, robusta e eficaz a prever fenómenos de elevado impacto ambiental e social, como também a providenciar serviços de suporte à decisão no longo prazo. Tornando-se assim não só num meio de previsão para alerta precoce, mas também para planeamento e desenvolvimento de estratégias de negócio e de políticas para preparar a sociedade para os desafios extraordinariamente complexos de um planeta em crítica mudança.

Em suma, dar saltos quânticos nas ciências da complexidade não tem implicado somente avançar o conhecimento e a tecnologia, propósitos já de si bastante gratificantes. Mas também desenvolver e providenciar uma plataforma robusta e unificada com mecanismos eficazes para compreender, abordar e resolver problemas complexos, poupar vidas, otimizar recursos, reforçar resiliência, criar valor, e de modo geral contribuir construtivamente para a caminhada coletiva que fazemos enquanto sistema, enquanto sociedade.